O termo “salvador branco” descreve um fenômeno cultural no qual pessoas brancas são retratadas como heróis ou salvadores em narrativas que envolvem minorias étnicas ou grupos marginalizados.
Esse conceito tem suas raízes históricas na colonização e no imperialismo, no qual figuras brancas frequentemente ocupavam papéis de poder e autoridade sobre populações não brancas. O “salvador branco” é caracterizado pela representação de indivíduos brancos como aqueles que trazem soluções ou resolvem problemas para grupos não brancos, muitas vezes perpetuando uma dinâmica de superioridade racial e reforçando estereótipos prejudiciais.
Essa manifestação é comum em filmes, livros, programas de TV e até mesmo em discursos políticos e filantrópicos. Por exemplo, em produções cinematográficas de Hollywood, não raro vemos personagens brancos sendo retratados como os protagonistas que lideram e salvam comunidades ou povos não brancos de situações adversas.
Essa representação pode criar uma narrativa de dependência e inferioridade das minorias étnicas, enquanto reforça a ideia de que apenas os brancos têm a capacidade de resolver problemas ou trazer mudanças significativas.
A seguir, pedimos para o mestre em sociologia Murilo Mangabeira Chaves responder algumas dúvidas sobre o comportamento de salvador branco e como ele se manifesta em sociedade.
Igualize: O que é “salvador branco”?
Murilo Mangabeira Chaves: “Salvador branco” é uma expressão para um determinado comportamento das pessoas brancas para com as pessoas negras. O comportamento se baseia no pensamento de que as pessoas negras sempre vivem o pior da desigualdade social e as pessoas brancas são os indivíduos que podem ajudá-las a sair ou aliviar o infortúnio em que vivem. Normalmente, a pessoa que exibe esse comportamento do ‘salvador branco’ possui um imaginário parecido com o do europeu colonizador que entende que os brancos são os seres humanos mais desenvolvidos do planeta e as pessoas negras são as menos inteligentes, as mais pobres e as menos civilizadas.
Quais são os estereótipos associados a essa ideia?
Chaves: Os piores possíveis. É o extremo da pobreza, é o estereótipo da falta de escolaridade, dos costumes mais bárbaros. Normalmente esses estereótipos são aqueles que tem uma lógica evolucionista de que o negro não chegou no patamar cultural, econômico, político e social em que o branco está.
Como o conceito de “Salvador Branco” se manifesta na sociedade contemporânea?
Chaves : De uma forma geral, quando o branco se coloca nessa posição de que o tipo de relação com as pessoas negras é de sempre ajudar uma pessoa que necessita do branco, você pode ter o comportamento do salvador branco se manifestando. É preciso lembrar que uma pessoa branca que se coloca na posição de um salvador vê sua relação com as pessoas negras do ponto de vista da ajuda ou da caridade. A pessoa branca está em posição de conceder um favor a uma pessoa negra que está em dificuldade e, assim, a pessoa branca tem a chance de mostrar altruísmo. A perspectiva da caridade é de entender que a pessoa branca é sempre a pessoa com mais recursos que exerce essa bondade, esse altruísmo, tentando contribuir para a pessoa negra sair do abismo social em que a pessoa branca acredita que a pessoa negra está.
Quais são os exemplos notáveis de personagens ou figuras históricas que são consideradas “salvadores brancos”?
Chaves: O exemplo maior de ‘salvador branco’ da nossa história é a princesa Isabel. Mais pela narrativa histórica que ainda resiste de que o fim da escravidão se deu pela bondade da princesa. Nessa narrativa, o fim da escravidão é fruto da bondade branca e não de um conjunto de fatores históricos internos e externos à sociedade brasileira. Em tempos contemporâneos, o comportamento do salvador branco pode ser uma fonte vantagens sociais, seja de prestígio social ou até mesmo de retorno financeiro. Alguns devem se lembrar da polêmica que envolveu a ex-BBB Rafa Kalimann que postou fotos em suas redes sociais sobre as crianças africanas que ela ajudava em missões voluntárias em Moçambique. Precisamos lembrar que a maior imagem que temos da pobreza no imaginário social é uma criança africana de pele bem escura. Quando essas imagens da missão humanitária aparecem é como se a pessoa branca estivesse expressando o máximo da bondade e do esforço na superação das desigualdades raciais ajudando uma criança africana.
Quais são as discussões contemporâneas e movimentos sociais que desafiam ou questionam a ideia de um “Salvador Branco”?
Chaves: O movimento negro e movimento indígena são os que mais questionam a ‘síndrome do salvador branco’ porque para esses dois grupos populacionais a relação histórica com os povos brancos foi de guerra e colonização. Os indígenas são os inocentes incivilizados que precisam da cultura branca e os negros são a personificação da desgraça social que só pode ser combatida com a caridade branca, pois os negros seriam incapazes de se livrar dos efeitos da desigualdade social sozinhos.
Como indivíduos podem reconhecer e combater os padrões de pensamento associados ao “Salvador Branco” em suas próprias vidas?
Chaves: A forma que talvez seja a mais eficiente é quando o branco questiona sua própria racialidade, sua branquitude. Uma reflexão que a psicóloga Maria Aparecida da Silva Bento reflete é que o branco acredita que só as pessoas negras pertencem a uma raça, enquanto as pessoas brancas são apenas exemplos individuais da humanidade. Não são apenas as pessoas negras que, ao mesmo tempo, são exemplos de individualidades com história própria e membros de um grupo racial, os brancos também são. Branco tem raça. Essa reflexão sobre a própria racialidade é que pode contribuir para que as pessoas brancas atuem de forma verdadeiramente eficiente na superação do racismo em vez repetir o comportamento do salvador branco. É preciso lembrar que o comportamento do ‘salvador branco’, muitas vezes, é visto pela pessoa branca como o maior exemplo de contribuição para a superação das dificuldades que as pessoas negras vivem na sociedade. O que contribui para a superação do racismo é acabar com os mecanismos de manutenção da desigualdade racial, e não exercer caridade como se o negro fosse um eterno desafortunado precisando da minha ajuda.
Existem exemplos de narrativas alternativas ou contrapontos ao conceito do “Salvador Branco”?
Chaves: Toda história em que as pessoas negras são protagonistas de sua história são eficientes para acabar com o comportamento do ‘salvador branco’ porque mexe com imaginário que se tem das pessoas negras. Nós não estamos acostumados com histórias populares onde não existem pessoas brancas ou que as pessoas brancas ocupam papéis secundários. Em uma sociedade racista, na qual o branco ocupa o topo da pirâmide social, não conseguimos pensar uma história ou narrativa digna de memória em que o branco não está. Acredito que isso ajuda a explicar porque o primeiro filme do Pantera Negra fez tanto sucesso e foi alvo de tantas discussões sobre projeção do imaginário sobre o negro. Mas não dependemos apenas de enlatados estadunidenses. Temos exemplos de literatos brasileiros que podem ajudar a quebrar o imaginário racista mostrando facetas de humanidade das pessoas negras como Conceição Evaristo, Allan da Rosa, e outros.
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