O que é antissemitismo?

Termo é explicado pelo cofundador do coletivo Vozes Judaicas por Libertação, Shajar Goldwaser

Antissemitismo é o preconceito e o ódio contra pessoas que têm origem ou pratiquem a religião judaica, ou seja, é o ódio aos judeus.

“O termo foi formulado na Europa e ele em si é problemático. Entender os judeus europeus como semitas (pessoas de origem da região do Oriente Médio, onde também se encontra Israel/Palestina) é dizer que eles não pertencem à comunidade europeia, que são estrangeiros, invasores e, por isso, podem ser expulsos e eliminados”, analisa o cofundador do coletivo Vozes Judaicas por Libertação, Shajar Goldwaser. O coletivo reúne judeus que são contra a formulação do Estado de Israel enquanto entidade que promove a colonização da Palestina.

Aumento de menções

As palavras “antissemitismo” e “antissemita”, assim como seus significados, ganharam motores de buscas e redes sociais após a explosão do conflito entre Hamas e Israel em 7 de outubro de 2023. Segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), foram 231 menções apenas na plataforma X (antigo Twitter) entre 7 e 24 de outubro.

Além disso, aproximadamente 40 mil palestinos, na sua maioria civis, foram mortos na região da Faixa de Gaza desde o início do conflito. O bombardeio a hospitais, escolas e campos de refugiados no local, assim como o corte de energia elétrica e proibição de entrada de alimentos, fez uma comissão investigativa da Organização das Nações Unidas (ONU) atribuir a Israel, em junho de 2024,  a responsabilidade por crimes contra a humanidade.

Mas seria criticar a existência do Estado de Israel da maneira como está configurado hoje ou a atuação do governo liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu antissemitismo? Para discutir o termo e as suas implicações na contemporaneidade, entrevistamos Shajar Goldwaser.

Igualize: O que é o antissemitismo?

Shajar Goldwaser: É o preconceito e ódio contra pessoas que têm origem ou praticam a religião judaica, ou seja, ódio aos judeus.

Qual a origem da palavra?

Goldwaser: O termo é problemático porque ele próprio reflete um sentimento antissemita. Ele é formulado na Europa e remete a uma geografia e origem étnica quando faz referência aos semitas, pessoas que provêm da região onde também estariam hoje o Estado de Israel e a Palestina. Entender os judeus europeus como semitas é dizer que eles não pertencem à comunidade europeia, que são estrangeiros, invasores e, por isso, podem ser expulsos e eliminados. 

Em quais circunstâncias históricas surge o antissemitismo?

Goldwaser: No feudalismo europeu da Idade Média. Quando o comércio era proibido, os judeus o faziam por não se verem submetidos aos mandamentos da Igreja Católica, que retalhou essa população que não a obedecia, propagando o antissemitismo. Foram mentiras como: judeus mataram Jesus; cozinham com sangue de crianças; envenenavam os poços de água no contexto da peste bubônica etc. Porém, os judeus trouxeram benefícios aos locais onde estiveram, especialmente devido à habilidade com o comércio e manuseio do dinheiro, além dos seus conhecimentos em medicina (também proibidos pela Igreja Católica), filosofia, entre outros. 

Como o antissemitismo se manifesta?

Goldwaser: Historicamente se deu de diversas formas. Desde a discriminação à segregação espacial nos guetos, que eram bairros onde se segregavam os judeus nas cidades europeias desde a Idade Média. A inquisição também matou muitos judeus e judias. Explosões consecutivas de um reino para outro. Houve também os pogroms, (ataques violentos a aldeias de judeus especialmente no Império Russo no final do século XIX), com queima de casas, destruição de comércios e estupro de mulheres. Até chegarmos na expressão máxima do antissemitismo que foi o Holocausto, o genocídio do povo judeu pelo nazismo.

Como você avalia a progressão do antissemitismo atualmente?

Goldwaser: A partir da Declaração dos Direitos Humanos em 1947-1948, após a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional, principalmente Europa e Estados Unidos, reconheceram o antissemitismo e decidiram não mais o aceitar. Passaram a reprimi-lo seriamente. Além disso, apoiaram a criação do Estado de Israel, como forma de reparação pelos crimes cometidos no passado, e pelo genocídio ao qual haviam acabado de sobreviver.  

Então, da forma como vejo hoje, o antissemitismo existe, mas não é estrutural e estruturante como o racismo para a população preta. Ou seja, ele não oprime uma população sistematicamente ou integra o sistema político e econômico, caso do racismo estrutural  no Brasil e no mundo. Isso já aconteceu com os judeus no passado: era parte do sistema político e econômico nazista, por exemlo, oprimir judeus. Porém, esse aspecto estrutural não condiz mais com a atualidade, Hoje os judeus integram o sistema político e econômico enquanto privilegiados. O que não significa que hoje em dia não haja pessoas sendo e praticando atos antissemitas.

Em relação ao antissemitismo, como é a sua vivência de judeu israelense no Brasil?

Goldwaser: Ser judeu hoje no Brasil, de certa forma, é mais um privilégio do que uma questão de discriminação. Primeiro, ser socializado na comunidade judaica é uma porta de entrada para  a branquitude

Quando me digo judeu, as pessoas perguntam se frequentei o Clube Hebraica ou escolas judaicas – que são espaços de convivência da comunidade judaica de São Paulo, e que são espaços de socialização de um estrato mais elitista e de composição quase que inteiramente branca. Em uma entrevista de emprego, ser reconhecido como judeu não vai me prejudicar, ao contrário, pode-se subentender que venho de uma boa família, acessei estudos, saúde e tenho rede de contatos. Eu já sofri antissemitismo na adolescência, por colegas do prédio onde morava, o que não significa que é uma opressão sistêmica. Em suma, o antissemitismo, como toda forma de discriminação, precisa ser combatido porque ninguém quer ter sua identidade discriminada. Mas temos que fazer um asterisco para não entender que os judeus sofrem de um racismo estrutural, já que hoje pertencem à branquitude.  Vale aqui outro ponto de reflexão: ainda que a esmagadora maioria dos judeus sejam brancos, ou sejam socializados como, há judeus de origem árabe (cujos traços característicos são comumente apagados, quando não discriminados).

O antissemitismo é uma forma de racismo?

Goldwaser: Do modo como enxergo, não é uma forma de racismo estrutural, como acontece com pessoas pretas. Você vai ouvir muita gente da comunidade negra falando ter que trabalhar e estudar em dobro. Não é o caso dos judeus. Mas vejo como uma forma de racismo semelhante à discriminação contra pessoas LGBTQIAPN+, por exemplo (Nota Igualize: a LGBTQIAPN+ foi comparada ao racismo pelo Supremo Tribunal Federal em 2019).

Ser antissionista (opor-se a exclusividade do Estado de Israel na Palestina) é ser antissemita?

Goldwaser: Entendo que não. Enquanto o antissemitismo é o ódio contra judeus, ser antissionista é criticar a ideia de que um povo (no caso o povo judeu) pode ter mais direitos à terra do que outro (no caso o palestino). Mas, para isso, é preciso entender onde o sionismo entra nessa história. Basicamente, há uma grande diversidade cultural no judaísmo, se pensarmos em todas as comunidades judaicas de diferentes continentes, ao longo da história. O sionismo nasce na intenção de transformar a identidade judaica, compreendida até então como religiosa, cultural, linguística, e completamente diversa, numa identidade nacional. 

Na busca por unificar esse mosaico sob uma só bandeira, também se elaborou essa ideia do “novo judeu”, que estaria desconectado do seu passado de perseguição e opressão, e preparado para colonizar e estabelecer um novo Estado. Essa virada funciona de maneira muito similar à noção da universalidade do homem branco proposta por Cida Bento. No caso judaico, esta nova judeidade, construída a partir de valores europeus e aspirações nacionais, passa a ser compreendida como universal, e todas as outras formas de judeidade ou judaísmo que não tenham Israel como seu centro, passam a ser rechaçadas ou compreendidas como mais atrasadas ou menos civilizadas. No começo do século XX, as primeiras organizações do movimento sionista foram bater à porta dos grandes impérios da época, britânico, francês e alemão, para pedir legitimidade e apoio na sua empreitada para construir um Estado judaico. Basicamente, o pedido foi de “também queremos participar desse conjunto de nações, e seus respectivos Estados, que compõem a comunidade internacional”. A meu ver, agora que podemos usar as lentes decoloniais ou contra-coloniais, isso foi uma forma de dizer: “também queremos ser reconhecidos e ter os mesmos direitos dos povos brancos”. Por fim, os judeus foram reconhecidos e aceitos como uma nação que detém direitos. Os sionistas chegaram à Palestina exigindo um país e tiveram suas demandas aceitas. A questão é: por que quando os palestinos exigem o mesmo, ter direito à terra na qual habitam há milhares de anos, eles não são contemplados? A diferença está em que os judeus, depois da Segunda Guerra Mundial, tiveram sua branquitude amplamente aceita, enquanto os palestinos, por serem árabes, até hoje são condenados à colonização. 

Conectando com a pergunta inicial então, antissemitismo é o ódio aos judeus. Antissionismo é rechaçar e combater esta diferenciação e injustiça entre colonizador e colonizado causada pelo sionismo.

A necropolítica é um conceito do filósofo Achille Mbembeque sobre como o poder político decide quem pode viver e quem deve morrer, valorizando de forma desigual a vida de brancos e não-brancos. Você percebe isso no conflito entre Israel e Palestina?

Goldwaser: Quando houve o ataque de 7 de outubro de 2023 à Israel, a comunidade internacional se solidarizou. Teve a bandeira de Israel projetada nos grandes monumentos da Europa (Torrei Eiffel, Portão de Brandenburgo etc..) como reconhecimento dos ataques, e mensagens de solidariedade da maioria dos líderes do mundo. Atualmente, com mais de 40 mil palestinos mortos na Faixa de Gaza, não há a mesma repercussão. O que significa isso? Que os judeus foram aceitos à branquitude, conjuntamente aos países europeus e, assim, detêm o chamado direito à segurança, e à autodefesa. Agora, os palestinos, ou os sírios ou iraquianos, por exemplo, não possuem os mesmos direitos. Por isso, quando morre um israelense morto por palestinos, ele é acusado de terroristas, mas quando um israelense mata um palestino, é considerado “autodefesa” ou “dano colateral”. O mesmo vale para as invasões norte-americanas ao Iraque, Síria, Paquistão entre outros. Essa diferenciação é reflexo de um sistema de colonização e de racismo estrutural, que eu, a partir de uma visão antissionista, crítico e me proponho a combater. 

Imagem: Freepik.

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