Em termos de gênero, os seres humanos podem ser enquadrados como cisgêneros ou transgêneros. O primeiro termo diz respeito às pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento e, o segundo, aquelas que não. Além disso, dentro do guarda-chuva trans, há inúmeras outras identidades, incluindo as travestis.
“A travesti é uma pessoa que vivencia papéis de gênero feminino. Pode se entender como mulher, como integrante um terceiro gênero ou de um não -gênero. Ou seja, ela pode ou não se reconhecer como mulher ou somente como travesti”, explica a doutora em psicologia, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e presidenta da Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura (Abeth-Brasil) Jaqueline Gomes de Jesus.
Entender o que é ser travesti também significa comprender que não existe uma única forma de ser mulher em sociedade, motivo pelo qual também se usa hoje o termo mulheridades. Além disso, ser mulher ou estar dentro do espectro das mulheridades também não está relacionado com ter um determinado sexo biológico, como pênis ou vagina.
“Assim, devemos nos referir a travesti sempre no feminino, o artigo ‘a’, que é a forma respeitosa de tratamento”, ensina ela, que é autora do e-book gratuito “Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos”.
Qual a diferença entre travesti e trans?
“A identidade travesti não é completamente diferente da mulher trans. Depende de como cada travesti se identifica. Para muitas delas, é intercambiável: falar a mulher trans, mulher transexual e travesti tem o mesmo sentido”, diferencia.
Na prática, isso significa que algumas travestis podem se reconhecer também como mulheres trans, enquanto outras podem achar importante, por questões políticas e de identidade, apenas se afirmar como sendo a travesti.
Como é intercambiável, muitas mulheres trans também podem se identificar como travestis. Na dúvida, vale sempre a pena perguntar para a pessoa como ela gostaria que se referissem à sua identidade de gênero.
A travesti na história
Outra diferença é que o termo travesti é mais antigo do que outras terminologias usadas atualmente, como transgênero.
Jesus conta que a identidade travesti começou a ser nomeada na Itália do século 16. O termo vem do latim transvestire, que seria ‘se vestir além’.
“Lembrando que não foram as travestis que se nomearam, mas pessoas cisgêneras e dentro de uma perspectiva bastante depreciativa”, detalha.
No Brasil e na América Latina, o termo foi reapropriado pelas próprias travestis para transformar seu caráter pejorativo em positivo. “O movimento social reforça a terminologia travesti para naturalizá-la”, assinala Jesus.
“Por tudo isso, é importante o reconhecimento da identidade travesti, que se afirma em função do estereótipo histórico da estigmatização do termo. Além disso, as travestis antigas nos permitiram chegar onde estamos na luta por direitos humanos e contra a discriminação pela sua resistência, afirmação, reconhecimento e subversão”, enfatiza.
Vale ainda destacar que, dentro da cultura travesti, há o pajubá, uma ‘linguagem secreta’ usada por elas para se protegerem de uma sociedade violenta e transfóbica. Para isso, o pajubá incorpora elementos linguísticos de diversas fontes, incluindo línguas africanas, dialetos locais e gírias urbanas.
Desafios atuais
As travestis ainda são alvo de estigmatização. Em termos de políticas públicas para a inclusão delas em sociedade, porém, Jesus observa avanços.
“Como em relação ao direito à identidade via retificação do registro civil; o reconhecimento de que a transfobia é um crime de racismo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que enfatizou que isso é algo inaceitável em termos de relações cidadãs”.
Entre os desafios atuais está a formalização e valorização do trabalho da travesti.
“Ainda carecemos de políticas públicas para garantir a empregabilidade e o direito ao trabalho sem que seja apenas sexual ou em espaços marginalizados”, acrescenta.
Outros desafios são evitar que crianças e adolescentes trans nas escolas sejam expulsos das escolas devido ao bullying ou discriminação de educadores e das instituições.
“Assim como a valorização e proteção das vidas trans. Travestis mulheres trans são alvo de feminicídio no Brasil, de exposição e de perseguição”, denuncia a pesquisadora.
“Quando conseguimos sobreviver e prosperamos na sociedade, não somos reconhecidas e por vezes perseguidas, devido ao estereótipo que diz que não poderíamos estar nesses lugares”, finaliza.
Imagem: A cantora Linn da Quebrada, primeira travesti a integrar o Big Brother Brasil, em 2022 (TV Globo/Divulgação)