O que é relacionamento afrocentrado?

Mais do que afeto, o amor entre pessoas pretas é visto como um ato político, de cura e de valorização da ancestralidade

Relacionamento afrocentrado, ou amor afrocentrado, é uma relação amorosa entre pessoas negras. Para quem vive esse modelo, amar e construir uma vida com outra pessoa negra é um ato político em um mundo que historicamente desumaniza corpos negros.

A produtora de conteúdo Michele Nascimento explica que, além do aspecto romântico, o relacionamento afrocentrado valoriza a ancestralidade, a identidade negra, a autoestima racial e contribui para o enfrentamento coletivo do racismo.

“É uma forma de resistência e de centralizar o amor entre os nossos”, conta ela, que está há dez anos com Maurício Ribeiro. Juntos, eles mantêm a página Mais Um Casal Preto.

“Ele foi meu primeiro relacionamento com outra pessoa preta e pude sentir a diferença desde o início: há acolhimento, pertencimento e amor. Sinto que sou um corpo que pode ser amado do jeito que é, e que podemos curar nossos traumas juntos”, descreve.

“A gente entende a história um do outro, do nosso povo, e nos acolhemos. Compreendemos a necessidade de resistir constantemente e oferecemos colo quando cansamos de lutar e precisamos de descanso”, compartilha.

Racismo nas relações

Mas por que o relacionamento afrocentrado passou a ser discutido? Para Nascimento, o modelo reflete o aumento da consciência racial entre pessoas negras e o entendimento sobre como o racismo impacta as relações afetivas.

“Por muito tempo, pessoas pretas se enxergavam como aptas a ter um relacionamento. O racismo é tão intrínseco que não víamos beleza ou potencial em nós”, analisa.

Michele Nascimento e Mauricio Ribeiro mantêm a página Mais Um Casal Preto. (Foto: Acervo pessoal/Divulgação)

“Corpos pretos são estereotipados constantemente. Enxergar beleza, carinho, amor e identificação em outro corpo negro já é uma valorização da nossa negritude e identidade — além de possibilitar a chegada de herdeiros pretinhos por aí”, brinca.

Apesar disso, Nascimento ressalta que o relacionamento afrocentrado não deve ser uma regra para todas as pessoas negras.

“Pessoas pretas que se relacionam com brancos têm diferentes experiências. Mas, claro, pode ser uma relação que não compreenderá suas dores e traumas”, pondera.

Para ela, um dos desafios no amor afrocentrado é desmistificar traumas — pessoais e ancestrais — que podem atrapalhar a relação. “Fazer isso permite que a gente consiga se abrir”, opina.

Já para Mari Sankofa, da Sanko Family, em um relacionamento afrocentrado é essencial compreender o contexto do parceiro.

“Se eu me relaciono com um homem preto, qual é a vivência dele nessa sociedade? O que ele passa? Que estereótipos são atribuídos a ele? Considerar esses contextos desenvolve um alto nível de empatia”, aponta.

Perspectiva africanista

Mari e Rafael Sankofa acreditam que o relacionamento afrocentrado é aquele que, mais do que ser vivido por duas pessoas negras, coloca valores africanos no centro da relação. Eles adotam uma perspectiva africanista tanto no relacionamento quanto na criação dos filhos.

Mari e Rafa Sankofa adotam um relacionamento afetivo e familiar baseado em valores africanos. (Foto Acervo Pessoal/Divulgação).

“Diferente dos valores eurocentrados ou ocidentais, a ideia de família, de filhos, de gênero é abordada por um viés da civilização africana”, resume Mari.

Segundo o casal, a vivência desses valores inclui também visões mulheristas e matriarcais.

“Ao contrário do feminismo, que não acredita que homens possam ser feministas, a perspectiva mulherista enxerga o gênero masculino como detentor de energia feminina e, assim como qualquer pessoa da comunidade, capaz de discutir todos os assuntos”, explica Mari.

“Além disso, vivemos o matriarcado, que entende poder e autoridade de forma diferente da perspectiva ocidental de ‘chefe’. É uma posição de honra, respeito e consideração. Assim, sempre se ouve a opinião de uma mulher em qualquer assunto. A perspectiva dela é importante”, ensina.

Para Mari Sankofa, apenas um relacionamento que coloque princípios africanos no centro é capaz de valorizar plenamente a identidade negra.

“A chamada ‘identidade negra’ foi criada pelo colonizador e a partir das violências que sofremos. Não existe a possibilidade de uma pessoa preta se ver como humana se não se conectar com sua origem africana”, pondera.

“Pessoas pretas se relacionam por meio de padrões que não foram criados por e para elas. A perspectiva africana revela nossa potencialidade”, opina Rafael.

Para Mari, viver uma perspectiva africanista na relação é experimentar um sentimento de retorno à origem.

“É reconstruir um quilombo e uma comunidade africana onde estou”, finaliza.

Imagem: Freepik

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