Praticar a corrida pelas ruas da cidade não é algo simples para pessoas transgêneras (trans).
“Como travesti, eu sempre sofri diversas violências. Então, correr sozinha nunca foi uma opção para mim. Nunca me senti confortável em praticar essa atividade”, relata a modelo Patty Micheletti, 24 anos.
Há um ano, ela e outras pessoas trans foram convidadas por um projeto para correr junto a pessoas cisgêneras com o intuito de tornar aquele grupo mais diverso. Quando o projeto terminou, os participantes trans perceberam que poderiam criar uma comunidade para praticar a corrida coletivamente. Nascia, assim, o projeto Trans no Corre, iniciativa na qual Micheletti é uma das líderes.
O grupo se reúne na Praça Roosevelt, região central de São Paulo, todos os sábados às 10 horas da manhã. Depois de um alongamento coletivo, eles correm no Elevado Presidente João Goulart (Minhocão).
“Percebemos que podíamos criar essa comunidade com o propósito de construir uma nova narrativa sobre a relação de pessoas trans com o ambiente esportivo”, justifica a modelo.
Ressignificar a cidade
Ator e liderança do Trans no Corre, Dante Preto enxerga no Trans no Corre a possibilidade de ressignificar a relação das pessoas trans com a cidade.
“A cidade é vendida como livre e para todos, porém, o estado nega o acesso de pessoas trans a esses espaços de lazer com a falta de segurança. Isso é agravado por intersecções socioeconômicas e de raça: por exemplo, se você for pobre, preto e trans, será ainda mais difícil acessar a cidade”, detalha.
“Usamos a frase ‘invadindo a cidade’ no nosso logotipo para promover esse processo de ocupar espaços e construir pertencimento em lugares em que isso nos foi negado. Todos os sábados, reconstruímos um pedacinho daquilo que historicamente nos foi proibido: o sentimento de pertencer, de sentir que podemos andar na rua e de que esse espaço e essa cidade também são nossos”, descreve Micheletti.
“Quando se pensa em uma comunidade tão excluída, somente da gente conseguir reunir essa galera todo sábado de manhã, já é um grito”, compartilha Preto.
“Isso nos possibilita fazer amizade com as pessoas da região e o medo que eu sentia, a sensação de que eu era um extraterrestre ali, acaba. Em grupo, algumas situações de transfobia que vivemos são superadas mais facilmente. A gente se sente seguro”, acrescenta o ator.
Inclusão social
Para Micheletti, outro benefício do Trans no Corre é mudar no imaginário da sociedade os lugares em que pessoas trans podem ou não ocupar na cidade.
“Historicamente, nos espaços onde nos alongamos e corremos somente era possível enxergar travestis durante à noite, em contexto de prostituição e perseguição policial. Correr a luz do dia na região central de São Paulo, enquanto constrói uma relação de saúde consigo e vínculos com pessoas semelhantes, vai na contramão do que a sociedade nos tem oferecido até agora”, analisa.
“Ou seja, transforma a relação da cidade com os nossos corpos”, resume Preto.
Além disso, há o reencontro da pessoa trans com os esportes, conforme explica o ator.
“Existe um afastamento após a adolescência. As mudanças corporais indesejadas fazem a gente ter vergonha dos olhares que nos lançam. Isso me afastou do ambiente esportivo”, revela Preto.
Para completar, há um sentimento de construção de comunidade. “A coletividade transforma, o esporte coletivo possibilita a construção de afeto, de memórias felizes, trocas de histórias e de experiências. Isso traz bem-estar e desenvolve as pessoas em diversos aspectos”, reflete Micheletti.
“O Trans no Corre não é apenas uma comunidade de corrida de rua. Por meio desse censo de comunidade, também nos movemos coletivamente para acessar outros espaços na cidade, como parques, cinema e teatro”.
Estreitando laços
Segundo Preto, o aquecimento e o momento pós-corrida são importantes para estreitar os laços entre os participantes.
“É o momento de conversar, de receber novos membros”, conta o ator.
“Além disso, evitamos um viés militarizado e competitivo para o nosso ambiente. As relações são horizontais: ninguém é maior ou corre melhor do que o outro. Estamos ali de igual para igual”, destaca Preto.
Tudo isso agrega benefícios à saúde física e mental das pessoas trans.
“Ter um coletivo de atividade melhora sintomas da depressão, ansiedade e solidão. Dá forças para seguir lutando por uma vida com dignidade. É uma terapia para enfrentar a semana”, finaliza Micheletti.
(Crédito: Acervo pessoal/Divulgação).
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