Desfem é uma redução da palavra desfeminilização. Ela vem de um movimento de mulheres – em sua maioria, lésbicas – que rejeitam uma feminilidade padrão imposta ao gênero feminino desde o nascimento.
“Há normas de gênero que a sociedade espera que cumpramos desde o nosso primeiro respiro. Muitas mães furam a orelha do bebê (que nasce com vagina) como uma demarcação de gênero. No campo das questões estéticas, há ainda o cabelo comprido, maquiagem, salto alto, roupas curtas que tiram liberdade de movimento e são desconfortáveis. Quem mais faz cirurgias estéticas no mundo são mulheres”, explica a ativista digital e lésbica não feminina Kim Freitas.
“Ou seja, há um padrão de feminino a ser atendido. Assim, falar sobre desfem é falar sobre uma mulher desfeminilizada”, acrescenta.
Confira abaixo a entrevista completa!
Quais são as características de uma mulher não feminina?
Freitas: Geralmente, elas utilizam roupas que a sociedade lê como masculinas: bermudas, bonés, camisetas largas, top esportivo, tênis, cabelo curto etc. Usam roupas confortáveis e rejeitam a maquiagem. Então, quando você pensa em uma mulher feminina, uma Barbie, a mulher não feminina vai rejeitar todos esses signos.
Além das questões estéticas, a quais normas de comportamento o conceito de desfem se opõe?
Freitas: Não se trata somente de mudar o guarda-roupa, ou cortar o cabelo. Mulheres desfeminilizadas desafiam normas de gênero tanto de maneira estética quanto comportamental. Na feminilidade, espera-se que as mulheres sejam dóceis, abram mão de si mesmas em prol do outro que, geralmente, é um homem. Quantas mulheres, por exemplo, não mudam o tom de voz para falar com homens? Falar baixo, de maneira meiga, é um exemplo de padrão comportamental de feminilidade. Ao entender o desfem, a gente percebe as imposições do patriarcado e começa a se comportar de forma diferente, a vivenciar uma maneira mais livre de existir, recusando determinadas violências, como alterar o tom de voz, por exemplo.
Como surgiu o tema?
Freitas: Eu não acho que exista um marco histórico. Em diversas culturas houve mulheres que rejeitaram padrões de feminilidade impostos de acordo com o seu contexto social. Visto que a feminilidade é um mecanismo de opressão implementado pelo patriarcado, ou seja, pelos homens, é natural que muitas mulheres, ao longo da história, quiseram se rebelar desses padrões que trazem desconforto e violência.
Quais movimentos ou grupos que adotam a desfem?
Freitas: A desfeminilidade está muito atrelada à lesbianidade, que geralmente entende a feminilidade como algo a serviço da sociedade heteropatriarcal, ou seja, como algo inventado por homens e a serviço deles. Na maioria dos casos, as mulheres que se libertam desse padrão não são heterossexuais.
Há fatos históricos relacionados à desfem que devem ser destacados?
Freitas: Cito a origem do termo sapatão. Provavelmente, veio de mulheres que queriam quebrar os estereótipos de gênero, que não gostavam de utilizar salto alto e todas essas vestimentas impostas. Elas iam ao setor masculino de vestimentas fazer compras, que, obviamente trazia um modelo de roupa e calçado pensado para homens e em tamanhos maiores. Então, elas compravam sapatos maiores do que os seus pés para se sentirem confortáveis e fiéis à forma que queriam existir na sociedade. Com isso, ficavam com um pezão, com um sapatão. Um exemplo de que a não feminilidade está atrelada à lesbianidade.
Quais os termos nacionais relacionados a desfeminilidade?
Freitas: O Brasil é um país de dimensões continentais e cada região tem suas variações de termos que fazem alusão a mulheres que rejeitam a feminilidade. Não há um único termo que abarque todas essas variações culturais. Eu, por exemplo, sou uma mulher nascida e criada em Salvador (BA). Para mim, o termo desfem remete a um movimento protagonizado por mulheres sudestinas mais novas. Eu me identifico mais com o termo caminhoneira. Há ainda os termos bofe e bofinho, que são marcantes, mas que não me agradam.
Quais são as críticas às desfem?
Freitas: Criticam-se mulheres caminhoneiras por reproduzirem masculinidade e comportamentos tóxicos, o que é algo real. Porém, para muitas delas, faltam modelos de referência positivos. Não raro a sociedade nos joga para um lugar de projeto mal sucedido de homem, que somos homens ou desejamos sê-lo, o que é uma falácia. Por não estarmos em padrões de feminilidade, não somos vistas como uma mulher válida: nossa mulheridade é invalidada. Muitas críticas ou atitudes são lesbofobia e misoginia, como tratar a gente no masculino, por exemplo. São crimes e violências também. Penso que é possível criticar a reprodução de comportamentos tóxicos sem cair nisso, sem pintar a caminhoneira como o diabo, sem deixar de entender que mulheres femininas também podem pisar bola, ter práticas ruins em suas vidas, não somente as não femininas.
Imagem: Freepik