Cozinha afrodiaspórica resgata autoestima e ancestralidade da população negra

Chef e pesquisadora Aline Chermoula destaca as principais influências dessa culinária nos pratos brasileiros

A cozinha afrodiaspórica é aquela cujos ingredientes e pratos são originários do continente africano ou fizeram parte da alimentação dos africanos escravizados quando chegaram ao Brasil e outros países do mundo.

O termo afrodiaspórico se refere à cultura das comunidades afrodescendentes dispersas globalmente, principalmente devido ao tráfico de escravos. Assim, envolve a manutenção e adaptação de tradições africanas em novos contextos.

“Essas pratos e ingredientes permaneceram vivos na nossa alimentação até hoje por conta da força e resistência dos nossos antepassados. Assim, o valor dessa comida não é apenas nutricional, mas também afetivo e de proximidade com a ancestralidade a partir do alimento”, resume a chef e pesquisadora de culinária afrodiaspórica e africana.

Aline Chermoula.

Igualize: O que é a cozinha afrodiaspórica?

Aline Chermoula: As principais características da cozinha que recebe essa influência africana, que a gente chama de afrodiaspórica, são os ingredientes. Eles ou têm a sua origem no continente africano ou fizeram parte da alimentação dos africanos escravizados quando chegaram ao Brasil. Exemplos são o coco, quiabo, couve, batata-doce, abóbora, mandioca, carne seca, inhame, galinha e o próprio dendê. E percebo que esses alimentos estão presentes não apenas na culinária afrobrasileira, mas na culinária afro de outros países das Américas que receberam essas populações africanas na condição de escravizados.

Quais são as características dessa culinária?

Chermoula: Podemos citar o modo de preparo das comidas, que envolvem vários ingredientes misturados. Em sua maioria, há pratos que são misturas de carboidratos, proteínas vegetais, tudo misturado em um grande calderão com cozimento lento, de  horas, para ser servido em um banquete delicioso.

Quais são as influências africanas mais evidentes na culinária brasileira?

Chermoula: Estão no modo de fazer, de cortar, de mexer essa comida com carinho, atenção, de uma forma densa e forte, transmitindo energia para a comida. Essa é uma influência africana, assim como os temperos, como a pimenta e o coentro, e o colorido do prato. Também houve o surgimento de novos pratos, como o quindim, que é um doce afrobrasileiro com forte influência da culinária africana. O africano utilizava o coco de forma diferente do usado no Brasil e na Europa. Ele compreendeu que o coco ralado daquela forma específica tem consistência semelhante à farinha de amêndoas, fazendo a substituição no uso desse doce, posteriormente chamado quindim.

Como a culinária afro diaspórica contribui para a preservação da cultura e identidade africana nas diásporas?

Chermoula: Ela traz elementos, como o modo de servir em folhas, como as de bananeira; de comer o que hoje conhecemos por plantas alimentícias não convencionais (Panc), de comer vinagreira. Essas hortaliças são do tempo dos avós, que tinham ali no quintal um mato que alimentava. Também reconhece as técnicas culinárias africanas, como o uso do pilão, da pedra para ralar, na colher de pau. Contribuições que essa culinária cheia de identidade africana nos permitiu preservar.

Quais são alguns pratos emblemáticos da culinária afro diaspórica e suas histórias?

Chermoula: Além do quindim, que é um prato afrodiaspórico, delicioso e que mora em nosso coração, temos no sul dos Estados Unidos o Zambalaya, que é um arroz com especiarias, carnes e aromáticos que deriva do arroz jollof (originário do oeste africano). Tem o nosso angu, que são essas massas, essas bolas de carboidratos.  Ele é feito de fubá mimoso, mas que também tem ali uma farinha de mandioca, que é esse carboidrato misturado com água, que pode ou não ser cozido. Cito também o cuscuz, que é uma técnica culinária africana aplicada num grão, que foi trazida para o Brasil. Aqui, como em outras localidades das Américas, tornou-se uma comida mais regional. A partir dessa técnica culinária, deriva-se em outros cuscuzes afro-brasileiros: há mais de 26 tipos já catalogados no país. Para completar, temos o uso da pimenta, que é uma coisa extraordinária.

Qual a importância de ensinar crianças sobre a culinária afro diaspórica?

Chermoula: Primeiro, para promover a conexão das crianças com alimentos ancestrais africanos, falando para eles sobre a parte nutricional e da nossa história, que envolve a chegada desses alimentos aqui no Brasil. Segundo, para permitir que construam uma identidade direta com os sabores desses alimentos, também pensando no aspecto afetivo, das crianças cozinharem e comerem esses alimentos junto à família, celebrando os seus ancestrais. Elas aprendem como nossos ancestrais comiam esses alimentos, o significado e a importância deles. Eles permaneceram vivos na nossa alimentação até hoje, por conta da força e resistência dos nossos antepassados. Em resumo, o valor dessa comida não é apenas nutricional, mas também afetivo e de proximidade com a ancestralidade a partir do alimento.

Quais desafios você enfrentou em sua pesquisa sobre a culinária afro diaspórica?

Chermoula: São vários. A escassez de bibliografia, por exemplo. Geralmente, os documentos e materiais aqui encontrados são em outros idiomas. Quando se estuda a culinária do norte da África, a maioria dos materiais são em árabe e a tradução é complexa. Além disso, há a falta de estímulo para pesquisas voltadas para esses alimentos e para essa culinária africana, que é de uma cultura renegada no Brasil.

Qual a importância da culinária afrodiaspórica neste momento histórico atual?

Chermoula: É uma forma de resistência que permanece séculos viva, e elemento identitário que fortalece a autoestima. Ela evidencia a nossa força como povos descendentes de escravizados e resgata a autoestima do povo negro em uma sociedade racista. Quando a gente conhece nossa história, permite reconectar com nossa ancestralidade.  Quando a comemos, nos empoderamos.

Foto capa: Jonathan Brasil/Divulgação

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