“Intolerância religiosa é uma decisão individual, coletiva ou de uma instituição religiosa, de não tolerar outras crenças ou uma religião específica”, resume o babalorixá, doutor em Semiótica pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Intolerância Religiosa, Sidnei Barreto Nogueira.
Ele explica que a intolerância religiosa tem duas características principais: a primeira é uma ideia de hierarquia, ou seja, de que uma religião é superior às demais ou é “a melhor” e “a certa”.
A segunda é etnocêntrica, ou seja, as pessoas tendem a julgar e avaliar outras religiões tendo a sua como padrão. Assim, ignoram a diversidade de crenças existentes no mundo.
“Além de ter componentes de ódio e de ignorância, a intolerância religiosa também é supremacista, ou seja, combate a diversidade na tentativa de mantar uma única crença”, acrescenta o pesquisador.
“O intolerante considera que a existência de pessoas acreditando em outras religiões violam a sua prática religiosa, o que é um princípio do fanatismo”, descreve.
A intolerância religiosa no Brasil
A intolerância religiosa se fez presente em diferentes momentos da história e motivou guerras diversas. No Brasil atual, ela apresenta características específicas:
- Nogueira explica que ela é uma manifestação de racismo religioso. Basicamente, o processo de escravização criou uma hierarquia que elevou a cultura branca e europeia a padrão e desumanizou a pessoa negra, negativando e inferiorizando tudo o que se referia a ela. Isso incluiu a religião, tida como magia e bruxaria.
- Outro aspecto é o uso do diabo – que é uma figura mítica exclusiva do cristianismo – para demonizar religiões de matrizes africanas. Por meio dessa demonização, constrói-se uma narrativa de bem contra o mal (maniqueísmo). E o mal, claro, são as religiões de matrizes africanas. “Cria-se essa ideia de mal para vender o que seria o bem”, analisa Nogueira.“Cria-se uma narrativa de que entidades das religiões africanas, como exus, pomba giras e outros orixás, são o mal e responsáveis pelos problemas financeiros, afetivos, entre outros”.
- A demonização de outras religiões deixa de enxergar a diversidade religiosa como algo harmonioso para classificá-la como um “mal”, além de tentar impor uma única fé como correta ou salvadora. Isso é um pano de fundo para a violência, como explica Nogueira. “Nós sabemos que o Brasil é um país religioso e muito devocional. Falar que existe uma única possibilidade de crença, que só uma é justa e normal, cria uma cruzada contra outras religiões”, descreve o pesquisador.
- O discurso de intolerância religiosa é professado por lideranças, celebridades e outras pessoas que possuem legitimidade. A partir disso, ele é reproduzido por fieis em palavras e ações violentas.“É um discurso que você não deve e não precisa tolerar outras religiões, que estará protegido. Isso é muito sério”.
- “Para completar, há um movimento que aproveita esse forte sentimento religioso do brasileiro para convertê-lo em política”, concluiu o pesquisador.
Consequência da intolerância religiosa no Brasil
O II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe (2023) apontou aumento dos casos de intolerância religiosa no país a partir das denúncias do Disque 100 de Violações de Direitos Humanos.
Foram registrados 477 casos de intolerância religiosa em 2019, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021. Já as notificações contra religiões de matriz africana cresceram 270% em 2021, atingindo 244 casos.
Entre as situações de intolerância religiosa mais comuns no Brasil estão depredação de terreiros, violência e impedimento de pessoas de praticarem a sua fé.
“Em outubro, um homem impediu que praticantes de uma religião de matriz africana fizessem oferendas na estrada de ferro de Santos (SP), agredindo um dos presentes. Eu pergunto: quem autoriza uma pessoa a fazer isso, quem colocou o ódio na cabeça dela? Devemos ficar enclausurados e abdicar da nossa religiosidade por conta de fanáticos fundamentalistas?”, questiona Nogueira.
Como consequência da intolerância religiosa, Nogueira aponta a crença de que todos os problemas pessoais ou do país são de ordem mística. “Há coisas que são da esfera humana: há questões políticas, de desigualdade social e a própria responsabilidade da pessoa sobre a sua vida. Nesse sentido, a intolerância religiosa infantiliza e impede a pessoa de pensar nos seus próprios atos”, enfatiza.
Como combater a intolerância religiosa?
Nogueira aponta três dimensões. A primeira é jurídica: a intolerância religiosa é considerada crime previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei nº 9.459/1997.
Além disso, a Constituição Federal Brasileira de 1988, no artigo 5º, destaca que a liberdade de crença é inviolável, enquanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estabelece que toda a pessoa tem direito à liberdade de religião.
“É possível denunciar gratuitamente no Disque 100; acionar a polícia militar pelo 190 e lavrar boletim de ocorrência, mesmo sabendo que muitas delegacias dificultam isso”, lamenta Nogueira.
A segunda dimensão é a educação, a Lei 10.639/03 torna obrigatório o ensino da cultura e história africanas nas escolas.
Por fim, conhecer e conviver com pessoas de outros credos ajuda a desfazer estereótipos negativos e respeitar a diversidade de crença.
“Não produza discurso de ódio contra religiões que você não segue. Fale sobre a sua religião sem satanizar as demais”, orienta Nogueira.
Imagem: Freepik
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