Filmes podem ajudar pessoas cisgênero a entenderem as vivências de pessoas trans.
“O audiovisual é uma ferramenta poderosa de criação e representatividade, ajudando as pessoas a mergulharem e entenderem um universo que não é o delas”, explica o diretor e roteirista transmasculino Cássio Kelm.
“Ajuda a diminuir preconceitos porque faz quem assiste ter empatia e se identificar com o personagem principal, uma empatia que pode ser transposta para a vida real”, aponta ele, que dirigiu diferentes curtas-metragens sobre pessoas trans.
Kelm também explica que o audiovisual pode ajudar pessoas cis a terem o primeiro contato sobre o que é ser trans.
“Se não tivessem a referência de uma personagem trans em uma novela ou filme, talvez não entenderiam o que é ser trans ao conhecerem alguém no dia a dia”, pontua.
Porém, Kelm destaca alguns cuidados sobre a representação trans em filmes.
“A comunidade trans é extremamente heterogênea, ainda que haja vivências em comum. Assim, a pessoa cis pode assistir a um filme e achar que aquilo que viu vale para todas as pessoas trans que conhece. Essa generalização pode ser complicada”, alerta.
Nem toda representação é positiva
A participação de pessoas trans na produção de filmes ainda é pequena, e o olhar de pessoas cisgênero pode reforçar estereótipos. Kelm aponta pelo menos quatro deles.
O primeiro é usar a pessoa trans como alívio cômico.
“Em Ace Ventura (1994), ao descobrirem que uma personagem é trans, todos vomitam”, relembra o diretor.
A segunda problemática são as narrativas de violência, que envolvem assassinatos e estupros.
“Caso de Boys Don’t Cry (1999), drama biográfico que narra a vida do jovem transgênero Brandon Teena.”
Há também os filmes que mostram pessoas trans odiando seus corpos e desejando ser cisgênero.
“A disforia de gênero é uma realidade para algumas pessoas, trans ou cis, mas não para todas”, pontua Kelm.
Ele cita como exemplo Vera (1986), baseado no livro autobiográfico A Queda para o Alto, de Anderson Herzer.
“O filme mostra uma cena inexistente na biografia, em que a personagem tem uma crise de disforia ao menstruar. Ainda que pudesse acontecer, é uma lógica criada por pessoas cis sobre corpos trans. Isso faz muitas pessoas trans pensarem: ‘Será que, para ser trans, eu deveria odiar meu corpo?’”.
Por fim, o quarto clichê é a pessoa trans que tem como único aliado alguém cis que entende que ela é trans.
“O que vejo, desde os relatos das travestis mais antigas, é que pessoas trans já convivem com outras”, observa.
De olho no transfake
Na hora de escolher os títulos, Kelm recomenda verificar se a produção evita o transfake – prática em que pessoas cisgênero interpretam papéis de pessoas transgênero, prejudicando a empregabilidade de artistas trans e reforçando sua exclusão.
“Muitos atores cis ganham prêmios interpretando pessoas trans, como em A Garota Dinamarquesa (2015). Há uma apropriação dessas vivências”, analisa Kelm.
Além disso, ele sugere observar se há pessoas trans em funções técnicas e criativas, como roteiro e direção.
“Se tivermos mais pessoas trans fazendo filmes, teremos uma representação mais rica sobre as diversas vivências trans”, reforça.
A seguir, confira 11 filmes que apresentam diferentes vivências de pessoas trans, recomendados por Kelm.
O funeral das rosas (1969)
Docudrama que faz uma imersão na cultura queer do Japão dos anos 1960. “Tem uma protagonista travesti e não passa por clichês. Como o filme é um híbrido de ficção com documentário, há uma escuta do diretor com aquelas pessoas trans, não as mostrando como querendo ser cis ou como incompletas. Elas falam: ‘Eu já sou o que quero ser’”, afirma Kelm.
Disclosure (2020)
Documentário sobre a representação trans em Hollywood. “Didático e fácil de entender, mostra o tamanho do problema”, analisa Kelm.
Uma mulher fantástica (2017)
Apresenta Marina (Daniela Vega), uma garçonete trans que sonha em ser cantora e vê sua vida mudar após a morte inesperada de seu namorado. Atriz trans, Daniela foi reconhecida com diversos prêmios no circuito internacional de cinema, e o filme ganhou o Oscar de Melhor Produção Estrangeira em 2018.
Romeus (2011)
“Filme alemão do tipo comédia romântica sobre o relacionamento entre um homem trans e um homem cis. Aborda, então, uma pessoa transmasculina gay, algo que nem sempre vemos em produções”, destaca Kelm.
Preciso dizer que te amo (2020)
“Curta-metragem dirigido por Ariel Nobre, fala de uma maneira muito poética sobre a questão do suicídio entre pessoas trans e pessoas transmasculinas”, apresenta Kelm.
Na estrada sem fim há lampejos de esplendor (2022)
Curta-metragem de Liv Costa e Sunny Maia (CE). “Muitas pessoas cis pensam que o fim da pessoa trans é ser igual a uma cis, o que está longe de ser verdade. O filme, de certa forma, fala sobre a importância de uma jornada, mais do que sobre o final dela”, analisa Kelm.
Tia Iracy Futebol Clube (2020)
“Layla Sah (CE) é uma travesti que fez um curta-metragem sobre sua tia, que vai na contramão dos estereótipos de gênero. Fala sobre o amor entre elas.”
De Chica Andrade e Rafael Mellim (SP), aborda Rosa, uma adolescente trans que é expulsa de casa e decide construir seu barraco na favela da Prainha. Enquanto os moradores debatem se ela pode ou não permanecer ali, um enorme projeto de expansão portuária avança silenciosamente, ameaçando a todos.
Da diretora Xan Marçall (PA), esse curta aborda o imaginário e os saberes produzidos por pessoas trans e travestis na Amazônia e no Nordeste brasileiro.
“Iauaraete é espírito de poder, ora onça, ora gente, nem homem, nem mulher. Encantaria das matas que surge nas noites de lua cheia para espalhar verdades”, resume a diretora. “É um filme experimental e transgressor.”
Perto de você (2021)
Curta-metragem de Cássio Kelm (licenciado para o Canal Brasil), aborda um jovem trans isolado em um pequeno apartamento junto a seu pai idoso no início da pandemia.
“É um filme em primeira pessoa que fiz com meu pai. Eu ficava na angústia de estar convivendo com ele e não conseguir contar que estava iniciando meu processo de hormonização e minha mudança de nome”, relata.
Lui (2017)
O curta-metragem de Kelm traz Lui, um professor de circo trans não monogâmico. A partir de um relacionamento amoroso, ele vivencia os prazeres e os desafios de se encontrar com a diferença. “Na época, queríamos fazer um filme que fosse leve e que tivesse uma pessoa transmasculina, em um período em que só víamos tragédias”, relata. Filme licenciado para o Canal Brasil.
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